domingo, 24 de abril de 2011

Dossiê Maiakovski

UM TOQUE DE BALALAICA PARA MAIAKOVSKI poeta da voz e
do gesto

Edilene Dias Matos

A Boris Schnaiderman, naturalmente.

Acima das cruzes e dos topos, Arcanjo sólido, pas

so firme,
Batizado a fumaça e a fogo –
Salve, pelos séculos, Vladimir!

Marina Tzvietáieva

Vladimir Vladimirovich Maiakovski nasceu sob o signo de câncer no dia 7 de julho de 1893 na aldeia de Bagdadi, situada nos arredores da cidade de Kutaisi, cujas antigas edificações se refletiam nas águas do rio Khanis-Tshali. Foi ali na Geórgia que ele deu seu primeiro grito, prenúncio dos vários brados estrondosos que daria ao longo da vida. Mais tarde, quando já vivia na cidade grande, Maiakovski, que fora um montanhês caucasiano, decidiu usar como único traje uma blusa de cor amarela, símbolo do sol e de sua Geórgia, tradicionalmente usada pelos camponeses russos. Ela então passou a ser uma marca do poeta até se converter numa espécie de traje ritual e constituir uma extensão de seu próprio corpo. Ao exibir-se com esse traje, Maiakovski buscava pôr em evidência sua nobre modéstia e sua distinção em relação às vestimentas convencionais:

Do veludo da minha voz
Vou mandar fazer minhas calças pretas.
De três metros de meio-dia, uma blusa amarela.1

Marcas profundas, oriundas do trato íntimo com a vida camponesa, ficaram para sempre incrustradas em seu ser, mesmo depois de ele ter se tornado um poeta tipicamente urbano, freqüentador assíduo do Café dos Poetas, seu refúgio predileto, além de reduto dos cubo-futuristas (Khliébnikov, Burliuk, Kamiênski, Krutchônikh, entre outros).
Maiakovski participou do grupo cubo-futurista, que editou o almanaque Armadilha para juízes (1910) e lançou “Bofetada no gosto público” (1912), uma espécie de manifesto destinado a combater o chamado ego-futurismo, criado por Ígor Sievieriánin e considerado um futurismo de salão.

Nesse espaço efervescente, ele pregou a destruição da palavra e da forma convencionais, da sociedade e da cultura.
Vale a pena abrir aqui um parêntese para explicar a relação do futurismo de Marinetti com o futurismo russo. É bem provável que as inspirações primeiras tenham advindo da Itália, e não há como negar a difusão dos mais diversos ecos da vanguarda italiana entre a intelectualidade moscovita dos primeiros anos do século XX, mas o movimento liderado por Marinetti teve suas especificidades na Rússia, onde se deu a cisão entre ego-futurismo e cubo-futurismo.

Sob o rótulo de ego-futuristas concentrava-se um grupo de intelectuais que via nas idéias estéticas vindas da Itália um meio fácil de chamar a atenção, sem, no entanto, contrariar o gosto da burguesia. Por outro lado, o grupo que aderiu ao cubo-futurismo objetivava levar às últimas conseqüências as idéias do polêmico artista italiano.


Pode-se afirmar que os adeptos do cubo-futurismo na Rússia traçaram rumos próprios e distanciaram-se de Marinetti, tendo inclusive negado veementemente seus propósitos, sobretudo aquele que toca num problema de base: o emprego de uma linguagem emotiva e não-poética.
A partir de sua adesão ao cubo-futurismo, Maiakovski viverá seu grande drama: poesia para o povo ou inovações e ousadias futuristas? Como conciliar a poesia para o povo com as formas expressivas, requintadas, intelectualizadas do futurismo? Comeria a massa do biscoito fino?


O dilema de Maiakovski teve relação direta e efetiva com as críticas que apontavam o descompasso existente entre suas metáforas ousadas/instigantes/intrigantes e uma linguagem mais despojada, capaz de conquistar efetivamente o coração do povo. Nesse sentido, o combate/crítica dirigido ao poeta era dos mais virulentos. Críticos e polemistas não entendiam o posicionamento do poeta em relação ao fazer poético. Não entendiam como os operários e os camponeses poderiam chegar à compreensão de certos versos do poeta, como por exemplo estes, de seu poema “Incompreensível para as massas”:

E para a massa
flutuam
dádivas de letrados –
lírios,
delírios,
trinos dulcificados.

Considerado um talento artístico incomum (poesia, pintura, cinema, teatro, publicidade, jornal), Maiakovski foi alertado por David Burliuk - em cujo estúdio ensaiava alguns desenhos - no tocante à sua excelência como poeta e decidiu-se pela poesia. Era na poesia que estava a sua genialidade, afirmara o amigo Burliuk com convicção após ter tido a oportunidade de ler algumas de suas primeiras composições poéticas (“Tenho diante de mim um poeta genial”). Burliuk se tornará uma espécie de anjo –da guarda do poeta, protegendo-o sempre, a ponto de oferecer-lhe ajuda financeira para que pudesse dedicar-se exclusivamente ao trabalho poético.


Em 1912, com 19 anos, Maiakovski publicou seu primeiro poema, “Noite”. A partir daí, ele tornou-se um poeta marcado pelo sinete da rebeldia exacerbada e desmedida. Apoiou sua vida no tripé Poesia, Amor e Revolução – a revolução se fez poesia e o amor se converteu em revolução.

Como diretriz artística, o poeta optou pela vanguarda, que se bifurcaria em vanguarda formal e vanguarda revolucionária. Em sua poesia, vida e obra acabaram por se interpenetrar. Segundo Fernando Peixoto, Maiakovski conseguiu uma união orgânica e concreta de seus sentimentos pessoais com o coletivo de grande complexidade do contexto russo-soviético.
Para ele, o amor era pura fonte de poesia, e falar de amor era falar de Lili Brik, que era mulher de Óssip Brik, outro grande intelectual, e foi a grande musa de sua vida2 .

Afora o teu amor
Para mim
Não há mar,
E a dor do teu amor nem a lágrima alivia
[...]
Afora o teu amor,
Para mim
Não há sol,
E eu não sei onde estás e com quem.
[...]
Afora o teu olhar
Nenhuma lâmina me atrai com seu brilho.

Leitor voraz e atento, Maiakovski ficou de início impressionado com dois autores, Puskin e Blok, e releu sobretudo Blok, cujo simbolismo viria a ser estimulante para o desenfrear da imaginação do jovem poeta. Leu filósofos, físicos, novelistas e poetas, como Hegel, Marx, Lassale, Demóstenes, Júlio Verne, Wells, Tolstoi, Dostoievski, Biéli, Balmont, Shakespeare, Byron.
Fascinado com a teoria geral de Einstein sobre o princípio físico da relatividade, lançou olhares de cobiça em direção à ciência, que para ele explicaria muitos mistérios ainda envoltos em nebulosidades. Segundo seu entendimento, essa teoria teria por meta final a superação da morte pelo homem.


Como Maiakovski se considerava um trovador (“continuo a tradição interrompida dos trovadores e menestréis”), não se pode pensar sua poesia como destinada a ser lida apenas em silêncio. Ela requer, antes de tudo, um forte grito, um prolongado som de balalaica. Além do acento marcante de oralidade, sua poesia supõe intensa participação do corpo, o que por sua vez envolve a variação dos tons de voz, a estruturação melódica e até mesmo a gesticulação, notadamente das mãos, além de meneios de cabeça, curvaturas do tronco e do corpo como um todo, compondo uma verdadeira encenação performática.

Os registros conhecidos das performances do poeta revelam-no um ator hábil, que dava espetáculos de recitação, atuava em comícios e tinha um público ávido e certo na Rússia das duas primeiras décadas do século XX.
Vladimir causava fascinação nos auditórios, a começar por seu porte - alto e másculo -, que sobressaía ainda mais em função de suas veementes gesticulações e do timbre estentóreo de sua voz. Cada aparição sua, ao mesmo tempo um martírio e um êxtase, era por si mesma todo um espetáculo. De temperamento dramático, não foi por acaso que Maiakovski-ator-espetáculo se viu envolvido (e apaixonado) pelas artes cênicas – circo, teatro, cinema.


Introduzido no mundo circense pelo palhaço Lazarenko, viveu momentos de intensa atividade criativa quando escreveu pantomimas e peças cômicas para serem interpretadas pelo companheiro palhaço. Esse convívio e essa experiência redundaram no espetáculo circense “Moscou incendiado”, escrito e dirigido pelo poeta em 1927.

Militante clandestino do partido bolchevique, em 1914 Maiakovski envidou esforços para a criação de uma arte cinematogáfica legitimamente russa, pois considerava o cinema “quase uma concepção do universo”, expressão do movimento, veículo inovador da literatura e destruidor de estéticas obsoletas, além de difusor de idéias revolucionárias e vanguardistas. Ressalte-se aqui que a princípio, o poeta não incluía o cinema no mundo das artes por considerá-lo apenas um reprodutor de imagens.

Outra particularidade do gênio criador de Maiakovski foi o teatro, espaço onde deixou profundas marcas ao converter dramas íntimos em espetáculo. Como exemplo, é suficiente citar “Mistério Bufo” (1918), considerado o início de um novo teatro. Nessa peça, preparada para comemorar o 1º aniversário da Revolução de 1917, Maiakovski insere o mundo no espaço de um circo. Intercalando números circenses e de musical-hall, escancara o choque de classes e o conflito ideológico ao relatar a viagem alegre de um grupo de operários que, depois do dilúvio revolucionário, se liberta de seus opressores parasitas e chega à terra prometida, após ter passado pelo inferno e pelo paraíso. Com essa obra, que teve grande repercussão na época e se tornou assunto de discussões palpitantes e controvertidas, Maiakovski conseguiu imprimir uma marca verdadeiramente popular ao refinado e intelectual teatro futurista.

Revolucionário militante, personagem brilhante e excêntrico do futurismo soviético, o inquieto artista esteve sempre às voltas com aventuras estéticas e toda sorte de provocações. Como poeta, submeteu a língua a estímulos inovadores e, consciente de sua missão, conduziu o verso até o limite extremo da expressividade. Além disso, subverteu normas obsoletas, violentou os versos bem-comportados, virando de cabeça para baixo as técnicas já consagradas, e, fazendo uso de recursos e estratégias revolucionárias, explorou exaustivamente as potencialidades expressivo-comunicativas da palavra. Explicava seu fazer poético pela simplificação excessiva e pelo jogo reflexivo.

Ele resumia seu pensamento da seguinte forma: “Eu não forneço nenhuma regra para que uma pessoa se torne poeta e escreva versos. E, em geral, tais regras não existem. Chama-se poeta justamente o homem que cria estas regras poéticas”.

Eu
à poesia
só permito uma forma:
concisão,
precisão das fórmulas
matemáticas...

Suas plurais vozes poéticas tinham um ponto comum: o homem inconformado diante das chagas abertas por uma sociedade injusta:

Come ananás, mastiga perdiz.
Teu dia está prestes, burguês.

Inconformado e criador, Maiakovski escolheu a tribuna como campo de luta:

Barreira alguma há de calar meu ímpeto,
nem os muros do Krêmlin, quadrimultiplicados.
Do asfalto, em turbilhão, vôo e vulnero tímpanos
Com o fragor fogoso dos meus brados.

Ele falou e bradou. E seu brado forte e poderoso ainda ecoa:“Mas a força do poeta/não se reduz só/a que te lembrem/no futuro/entre soluços”, pois Vladimir Vladimirovitch Maiakovski sabia muito bem da eficácia da “palavra cantada” pronunciada pelo poeta. Sabia que essa “palavra” afetaria a realidade, tornando-o o construtor de um mundo novo, de uma sociedade igualitária, fruto do poder revolucionário e transformador da linguagem poética.
Ao fazer da poesia uma arma de combate autêntica, verbo explosivo e revolucionário, ele conferiu à palavra poética uma significação toda especial, recusando o panfleto pelo panfleto e buscando sempre os tons de uma poesia maior.
São estas as constantes simbólicas de que se compõe a mitologia de Maiakovski: o ardor juvenil, a ousadia, a paixão pelas causas políticas e sociais, a luta por meio da poesia contra o opressor e pela libertação do oprimido, o amor como fator de liberdade, a beleza máscula do poeta, arauto da revolução, envolvida pela blusa amarela. Tais constantes não são meros artificialismos nem tampouco traços biográficos sem maior importância, mas vozes tonitruantes que ecoam no corpo vibrante de sua obra poética, feita de metáforas faiscantes, jogos de palavras, expressões iluminadoras e contundentes e esculpida pelos sons da voz, pelos grafos da escritura, pela cenografia do verbo, pelos gestos performáticos.

Uma obra que foi esculpida por punhais de afiadas lâminas, que se metamorfoseiam em palavras ao mesmo tempo cortantes e iluminadoras, palavras que ferem, que comovem, que apontam caminhos, que semeiam utopias. Palavras que se estilhaçam em múltiplas faíscas e que, paradoxalmente, ofuscam e orientam nosso olhar.
O pano desce. 10 horas da manhã de 14 de abril de 1930. O cenário é o pequeno estúdio, e o revólver espanhol talvez seja o que foi utilizado na interpretação do papel de Ivan Nov, o poeta vagabundo, personagem principal do filme “Mas não por dinheiro”. Conforme já havia anunciado (era vidente?), Maiakosvki (“Penso, mais de uma vez:/Seria melhor talvez/Pôr-me o ponto final de um balaço./Em todo caso/Eu hoje vou dar meu concerto de adeus.) puxa o gatilho.

Misto de sangue, paixão e lenda, Maiakovski passa a existir em seus poemas, já que exigia ele próprio que a arte fosse vida, vida tantas vezes exaltada por seu primado em relação à arte. Abaixo a arte, viva a vida!

DE “V INTERNACIONAL”

Eu
à poesia
só permito uma forma:
concisão,
precisão das fórmulas
matemáticas.
Às parlengas poéticas estou acostumado,
eu ainda falo versos e não fatos.
Porém
se eu falo
“A”
este “a”
é uma trombeta-alarma para a Humanidade.
Se eu falo
“B”
é uma nova bomba na batalha do homem.

1922
(Poemas - Vladímir Maiakóvski. Trad. Augusto de
Campos. Tempo Brasileiro, 1967, p. 79)

ESCÁRNIOS

Desatarei a fantasia em cauda de pavão num ciclo matizes, entregarei a alma ao poder do exame das rimas imprevistas.
Ânsia de ouvir novo como me calarão das colunas das revistas esses
que sob a árvore nutriz es-
cavam com seus focinhos as raízes.

1916
(Poemas - Vladímir Maiakóvski. Trad. Augusto de Campos e Boris Schnaiderman. Tempo Brasileiro, 1967, p. 73)

NOSSA MARCHA

Troa na praça o tumulto!
Altivos pincaros - testas!
Águas de um novo dilúvio
lavando os confins da terra.

Touro mouro dos meus dias.
Lenta carreta dos anos.
Deus? Adeus. Uma corrida.
Coação? Tambor rufando.

Que metal será mais santo?
Balas-vespas nos atingem?
Nosso arsenal é o canto.
Metal? São timbres que tinem.

Desdobra olençol dos dias
cama verde, campo escampo.
Arco-iris arcoirisa
o corcel veloz do tempo.

O céu tem tédio de estrelas!
Sem ele, tecemos hinos.
Ursa-Maior, anda, ordena
para nós um céu de vovos.

Bebe e celebra! Desata
nas veias a primavera!
Coração, bate a combate!
O peito - bronze de guerra.

(Poemas - Vladímir Maiakóvski. Trad. Haroldo de Campos. Tempo Brasileiro, 1967, pp. 77-8)

BIBLIOGRAFIA

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