quinta-feira, 21 de abril de 2011

IGNORÃNCIA DOS USUÁRIOS DO PORTUGÛES NO BRASIL.PARA REFLETIR PROFUNDAMENTE

essas, quem se estrepa sou eu. O que me exaspera é a preguiça e a assumida ignorância dos usuários do português no Brasil. Chamam urubu de meu louro, e blueberry de mirtilo. As pessoas estão falando e escrevendo em um português cada vez mais estropiado. E a causa principal se encontra na tenaz e persistente contaminação do inglês. Pior, acham o máximo cometer erros simultaneamente nas duas línguas, inglês e português. Assim, tenho sido forçado a lutar pela língua, como se envolvido em uma guerra. Não fui convocado ao serviço militar do léxico, mas eis-me no campo de batalha. E aí, como diz o ditado, agora dou uma boiada para não sair mais da briga. Como se mal diz hoje, eu me voluntariei (leia-se em bom português: “ofereci-me”). Chamem-me do que quiserem. Ao ataque!

Hoje em dia, a turma que entende das coisas adora falar que os estudantes “sofrem bullying”. Ô, palavrinha mais antipática... O tal do “bullying” está na boca do Brasil inteiro, e com pronúncia errada (as pessoas gostam de dizer “bãling”, o que as torna ainda mais ridículas). A palavra “bully” tem uma origem chã: provém de “bull”, touro, do inglês do século XVII e significava originalmente “fanfarrão”, “mata-mouros”. Só mais modernamente passou a designar perseguição e agressão, em português. O correto seria dizer: “Os estudantes sofrem perseguição nas escolas”. Não ouso afirmar que a língua portuguesa está sendo agredida. Para convencer meu interlocutor, tenho de “refrasear” (em vez de “refazer”) a afirmação para: “O português está sofrendo bullying”. Aí todos entendem, batem palmas e pedem bis – ou, como se diz em inglês, “encore”. Isso porque agora o correto já virou incerto. Eu não posso falar que temos um prazo final no fechamento desta edição. Para parecer mais sofisticado, tenho de alertar que não há prazo final, e sim um “deadline”. Sinto-me mais bacana por dizer “deadline” e “approach”, entre outras baboseiras do atual jargão do jornalismo.

Tenho a impressão de que todo mundo, inclusive eu, esqueceu-se das palavras precisas para designar determinadas situações e objetos. O bombardeio dos termos em inglês provoca amnésia linguística e tornou legítimos barbarismos como “provocativo” em vez de “provocador” e “basicamente” em vez de “fundamentalmente”. Ainda mais risível é quando usam “eventualmente” no sentido de “finalmente” – “eventually” em inglês. Realizou?

Nesse campo da prática de abusos, os críticos de música e cinema são tradicionalmente os piores: eles enxameiam seus textos de termos em inglês e expressões esdrúxulas. Só que agora andam a abusar do direito que se autoatribuíram (daqui a pouco vão dizer “se self atributiram” ou qualquer coisa do tipo). Ninguém mais estraga prazeres ao contar o desfecho de um filme; agora o que vale é o popular “spoiler alert”. Quando você vai contar a trama de um filme, terá de dizer assim: “Cuidado que tem spoiler!” Quando um crítico me diz isso me dá vontade de pular, pois a palavra soa como uma espécie de escaravelho ou baratagigante.

No dia a dia, o pessoal vive se metendo em “brainstorming”, vocábulo inglês que pode ser facilmente traduzido para confabulação. Que tal confabular em vez de “fazer um brainstorm”? Acho uma troca vantajosa, até porque é menos barulhenta, “brainstorm” evoca tempestades com raios e trovões. Nada melhor que confabular, trocar ideias e histórias. Além de tudo, soa melhor.

O português surgiu por volta do século XII (embora haja documentos de duzendos anos antes) a partir da evolução do latim vulgar na Península Ibérica, com contaminações de termos celtas, visigóticos e árabes. No começo, era chamado de “galego-português” porque a fala e a escrita apareceram no norte de Portugal, na fronteira com a Galícia. As poesias palaciana, de amigo e de escárnio e maldizer foram criadas e publicadas antes mesmo da consolidação de idiomas como espanhol, italiano, alemão e... inglês. Língua venerável, o português. Um idioma imperial do século XVI. Por isso, bonita como uma caravela engalanada, clara e solar como as igrejas góticas de Lisboa.

Amo os meios-tons que suas vogais contêm, aparentadas francês. É um grande prazer remexer no léxico riquíssimo do idioma, brincar com a possibilidade que ele oferece de alongar as frases quase ao infinito, pois o português flui como uma plácida corrente de rio. Adoro certas palavras que não constam de línguas irmãs, como a (quase) intraduzível “saudade”, ou aquelas que existem em outras, que ganham um sabor delicado no vernáculo, como “brisa”, “maçã” e “paixão”. Os ecos artísticos são grandes. Eu sei que blueberry consta de um belo filme de Wong Kar-Wai. Trata-se deMy blueberry nights, traduzido em português pelo título pedestre Beijo roubado em vez de “Minhas noites de mirtilo”. Blueberry é uma palavra que a gente amassa com dois dedos. Mirtilo, não. O vocábulo está em Camões e Petrarca, que, por sua vez, beberam na fonte de Horácio e Virgílio. Mirtilo evoca pastores do Parnaso e da Serra da Estrela. É antigo e lírico, como o português.

Por isso, podem vir com seu temível bullying contra a língua portuguesa, que estarei a postos para toureá-lo, apagá-lo e substituí-lo pelo castiço verbo agredir. Que mais “geleias de blueberry” arremetam contra mim, que as receberei com meu poderoso corretor. Não sou besta. Sei que as línguas são dinâmicas e abertas a influências externas. São organismos vivos. Mas daí a se render totalmente à ignorância dos próprios recursos, de seu thesaurus, vai um abismo. Os tão festejados e pouco praticados “laços lusófonos” só têm ajudado a apagar a delicada língua de Camões das areias da cultura. Parece que quase ninguém está disposto a preservar o que quer que seja, quanto mais suas referências espirituais. Restam alguns poucos Quaresmas neste país. Mas se eu for o último homem em pé para proteger o idioma, pelo menos terei orgulho do que deixei de realizar, mas ao menos tentei.

(Luís Antônio Giron)

Nenhum comentário:

Postar um comentário