domingo, 17 de abril de 2011

ENTREVISTA (ao Rio das Letras) Escritor e filósofo Edilson Pantoja


O escritor e filósofo Edilson Pantoja (1968), autor dos romances Albergue Noturno (Belém: Edições IAP, 2005), com o qual ganhou em 2005 o cobiçado “Prêmio IAP de Literatura”, promovido pelo Instituto de Artes do Pará, e A Pedra de Babel (São Paulo: Editora All Print, 2010), é um dos convidados para as comemorações do centenário da cidade de Capanema, a ser comemorado na primeira semana de novembro próximo. O Escritor, que é natural de Marajupema, vilarejo situado à margem paraense do rio Gurupi, na fronteira do Pará com o Maranhão, viveu em Capanema dos onze aos vinte seis anos, tendo aqui estudado nas escolas Maximiana Menezes, América Leão Conduru e Oliveira Brito. Edilson, que vive desde 1995 em Belém, onde é professor de filosofia, concedeu a entrevista abaixo, por e-mail, à professora e estudiosa da Literatura, Jucilene Ferreira, principal responsável pela recepção e divulgação da obra do escritor em nossa cidade.

Jucilene Ferreira: Além do teor filosófico, que é uma característica marcante em sua literatura, seu texto recorre com frequência à intertextualidade como recurso narrativo, como é o caso, por exemplo, da menção feita, em A Pedra de Babel, ao episódio bíblico do dilúvio. O próprio título deste romance, aliás, remete a outro episódio, também bíblico, o da Torre de Babel. Há uma relação entre o objetivo filosófico de seus textos e este recurso intertextual bíblico? E por que, no título desse romance, você faz uso da expressão "A Pedra", assim, no singular, e não de “as pedras”, se, como se supõe, a Torre não teria sido construída com uma única pedra?

Edilson Pantoja: Escrever, e, sobretudo, fazer literatura, é uma atividade para a qual convergem diversos fatores, diversas forças, das quais a grande maioria age de forma totalmente imprevista. Entre tais elementos estão leituras da vida inteira do escritor, vivências, situações, experiências, fantasias, memórias, sonhos, coisas ouvidas ou não, histórias, projeções, enfim, uma gama de elementos que comporão o texto, sem que, para tanto, o autor os tenha selecionado previamente. Eles vêm numa enxurrada, numa torrente desenfreada de imagens, ideias, pensamentos... E dão trabalho, muito trabalho para direcioná-los, para organizá-los na forma de uma obra. Mas, sobretudo, dão imenso prazer! Um prazer que, suponho, só experimenta quem cria.

Então, comigo acontece assim. Sou ficcionista. Meus livros são romances. Faço literatura, evidentemente. Mas também lido com a filosofia, e não me refiro apenas ao ensino, mas como tentativa pessoal de reflexão. E quando escrevo, embora procure compor uma cena, uma história, um romance, eu também quero pensar o meu tempo, as questões que dizem respeito não só às personagens do livro, mas, sobretudo, ao homem em geral. É a ele que eu me dirijo. É dele a figura, o exemplo, que compus na ficção. E que homem? Aquele de hoje. Forjado no tempo presente, marcado pelo horizonte histórico atual, condicionado pela existência tal qual ela, enquanto consequência dessa relação temporal com o passado e mesmo com o futuro, a ele, homem, se manifesta. Então, tenho, sim, uma pretensão filosófica. E me utilizo justamente daquelas imagens, daquela enxurrada que há pouco me referi, para duas finalidades. A primeira, literária. A segunda, filosófica. É claro que isto foge, de certa forma, a um estilo tradicionalmente consagrado de fazer filosofia, que é a forma do tratado, onde o pensador, munido de seus conceitos, expõe, na forma de um intrincado e lógico tecido argumentativo, suas premissas e conclusões, sua tese. Evidentemente, este não é o único modo. Um dos grandes filósofos, talvez o que mais se aproximou do ideal filosófico da crítica, do questionamento, que foi o alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), não escreveu sua mais volumosa produção em forma de tratado. Nietzsche recorreu de maneira abundante às imagens. Eu também recorro a elas. Mas ressalto que não uso a literatura para fazer filosofia, como se aquela estivesse a serviço desta. Uso as duas ao mesmo tempo, sem hierarquia.

Sobre a intertextualidade, sim. É um recurso. Como disse antes, há uma espontaneidade de elementos múltiplos, os quais, ante o ato criativo, se apresentam, digamos, com a finalidade de “entrar” na obra. Entre tais elementos estão leituras, referências, etc., e, naturalmente, uma vez dada a abertura, entrarão. Em meus textos há diversas referências bíblicas. Às vezes, sua presença tem apenas função estética, imagética; outras, não. A referência ao mito da Torre de Babel, presente no título do romance, por exemplo, não é fortuita. Há, sim, um objetivo. É que, como se sabe, o mito visa explicar a proliferação das línguas e, por consequência, dos significados. Então, uso esta referência para, em consonância com a trajetória do personagem, perguntar pela Pedra, sim, no singular, pela Pedra de Babel. A expressão está no singular, e com inicial maiúscula, porque, como sabemos, toda construção tem uma pedra fundamental, a chamada pedra angular. Então, nesta referência à alegoria do mito, não estou interessado nas pedras que teceram paredes da torre, mas naquela que lhe deu sustentação, a pedra fundamental, a base de todo e qualquer significar. A propósito, não é curioso que a proliferação de significados, à qual a proliferação das línguas ilustra, conforme o mito, seja, assim como no episódio da expulsão do paraíso, consequência de um ato de desobediência? Com o primeiro o homem tornou-se mortal; com o segundo viu-se diante da necessidade de multiplicar significados... Quer saber? Vejo, no caso da existência humana, uma íntima relação entre o que as duas narrativas bíblicas, segundo meu ponto de vista, alegoricamente abordam. Meu romance não é propriamente sobre o náufrago; é sobre Adeleine.

Agora, se você me permite, eu gostaria de fazer uma breve consideração sobre minha pretensão filosófica. Pois bem. Sei que, evidentemente, o pensamento, o pensar filosófico, não é privilégio de gregos e europeus. Considero-os fundamentais, e uso a palavra no sentido de algo basilar, mesmo; pois bem, considero-os fundamentais para que nós, Ocidente, adquiríssemos as feições culturais que são as nossas. Mas a filosofia não se esgotou com eles. Ao contrário! Ela principiou por lá, com os gregos, e de lá ainda se faz ouvir, impetuosa, sobretudo, como provocação, como base para renovados questionamentos, e novas aberturas. Afinal, o tempo é outro. O horizonte histórico é outro. E a filosofia não é algo datado. Ela é expressão do próprio anseio humano, da busca humana por respostas satisfatórias às tantas dúvidas e incertezas que lhe marcam a existência. Então, filosofar é algo inerente ao homem, embora apenas poucos homens sejam de fato filósofos. Para falar disto rapidamente, podemos dizer que filósofo é o homem que dá inteira liberdade ao pensamento. Coisa dificílima, já que, geralmente, o anseio por respostas satisfatórias se manifesta justamente quando ele, o homem, parece não precisar. Afinal, nossa cultura, que não tem em sua base apenas a influência filosófica, nos ensinou a acreditar em verdades absolutas. E quando a dúvida vem, e ela sempre vem, o homem comum não consegue lhe dar liberdade. Por quê? Por que rapidamente aciona as verdades de que, previamente, já dispõe, as quais, coercitivas que são, tolhem, então, o pensamento, a atitude perguntadora. Não digo que isto seja ruim, interpreto apenas como um recurso de proteção. Que, aliás, é comum a todos os homens, inclusive aos filósofos. E isto tem a ver com a necessidade de dar sentido (significados) à existência, que já mencionei.

Jucilene Ferreira: O farol e o deserto são imagens que atravessam todo o romance A Pedra de Babel. Qual o seu objetivo ao lançar mão delas? Que função elas exercem na vida da personagem?

Edilson Pantoja: O deserto e o farol são imagens que chegaram quase simultaneamente. O farol chegou primeiro, logo após eu assistir a um programa de televisão onde se mostrava um farol na ilha de Fernando de Noronha. Em seguida, veio o deserto. Era o dia dezesseis de outubro de 2005, sei disso porque costumo anotar as datas dos rabiscos que faço, e tenho manuscrito, em folhas de rosto de um livro de certo filósofo, o começo do romance. Eu acabara de assistir ao programa e saí para o supermercado com minha esposa. E, como geralmente faço, fiquei lendo na lanchonete enquanto ela fazia compras. E aí comecei a escrever o primeiro texto, o que me fez encher quatro páginas, dessas que ficam em branco no final dos livros. Depois passei para o computador e continuei aos poucos a história, cujo final eu só defini uns três anos depois. Minha intenção com ambas é a mesma que com as outras. Têm função estética e filosófica. Mas como o sentido do texto literário é algo que depende da leitura, e os leitores são diferentes entre si, alguns com mais recursos que outros, então deixo as imagens por conta de cada um, de cada experiência estética.

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Jucilene Ferreira: Tanto em “Albergue Noturno” quanto em “A Pedra de Babel” você organizou o texto em subtítulos e capítulos, ou episódios, bem curtos. Isso é uma marca da literatura contemporânea, uma forma de não tornar a leitura cansativa ou você tem uma pretensão própria frente ao leitor?

Edilson Pantoja: Os dois romances têm protagonistas narradores, o texto é em primeira pessoa. E ambos os personagens são dados a elucubrações, questionamentos, considerações..., o que faz com que algumas vezes o texto se torne um tanto quanto denso. Então, os capítulos – curtos - têm mesmo o objetivo de contrabalançar, de compensar de alguma forma, e manter vivo o interesse do leitor. Procuro dar a ele a sensação de ter lido um pequeno conto, mas um conto que tem, naturalmente, articulação e continuação no “conto” (capítulo) seguinte. Os dois livros têm essa característica. Embora os capítulos façam parte de um todo, que é o romance, eles podem ser lidos como se fossem autônomos. Mas, ressalto: não o são! Fazem parte de um todo que, naturalmente, quer ser lido inteiro. E para mim é fundamental que o leitor acompanhe toda a trajetória dos personagens, pois é no final que todos os episódios, todas as passagens, todas as situações, etc., ganham sentido.

Sobre se a organização em capítulos curtos é uma marca da literatura contemporânea, não me parece. Ou, pelo menos, minha forma de escrever não tem a intenção de ser “contemporânea”, isto é, de pertencer a um movimento ou coisa parecida. Aliás, fora todo o talento de Machado de Assis, e todos os méritos de D. Casmurro, que têm mantido o interesse dos leitores ao longo do tempo, lembro que uma das coisas que muito contribuiu para que eu lesse e relesse aquele romance, e, durante a leitura, parasse justamente para admirar o detalhe que vou anunciar, foi justamente o fato de ter capítulos bem curtos. Por outro lado, a internet é um fenômeno do nosso tempo. E, salvo exceções, é um meio no qual, devido à natureza interativa e dinâmica, textos longos costumam não atrair o leitor. E meus dois romances nasceram para, inicialmente, serem postados na rede. Então, vem daí, certamente, além de outros fatores como o estilo e o que já mencionei acima, uma das razões para os capítulos curtos.

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Consideração (esboço) sobre a relação entre filosofia e literatura

Eu vejo filosofia e literatura como vejo cada um dos demais fazeres humanos: eu as vejo como tentativas de significação. Como tudo que é humano, elas brotam de uma vontade de sentido. É que, me parece, cada ato humano, desde os mais simples da vida ordinária até os mais refinados e complexos, têm como função imediata o seguinte: revestir de sentido aquilo que por si mesmo não tem: a existência.

Como bem o constataram sábios da envergadura de um Charles Sanders Peirce, a cultura, de modo geral, é um grande e complexo sistema de signos. Nela tudo significa. Qualquer elemento pode conduzir a uma pista do que se passa no grande comércio das relações humanas. Mas não é por esse caminho de pensar atos culturais como elementos de comunicação, nesta perspectiva, o que me leva a esta incursão peculiar pela, digamos, semiótica. Para mim, a cultura, a civilização, os feitos humanos, corriqueiros ou grandiosos, são, antes de tudo, sintoma. Sintoma de uma ausência: a ausência de sentido para a existência. São, ao mesmo tempo, tentativas de preenchimento desta ausência. Daí eu ter dito acima: tentativas de significação.

Esta Ausência, este Nada, espreitava o homem, mal ele deu o primeiro passo para fora da Natureza. E o próprio homem não será outra coisa senão uma consequência desse encontro e desse convívio. Pois, como dito, a cultura, a história, enquanto sintoma, é também o horizonte no qual o próprio homem se faz e, fazendo-se, constrói formas de proteção contra aquela Ameaça Silenciosa. Primeiro vieram as lanças e ferramentas de pedra, as primitivas comunidades protetoras, a linguagem, que dá ao homem a ilusão de não ser só... Depois vieram mais instrumentos técnicos, também os deuses, os mundos além, as metafísicas, as artes, a filosofia, a ciência, enfim, a Civilização. Não obstante, a Ausência continua . A história da civilização é a história desse convívio e dessa luta. As especulações atuais acerca da clonagem humana ou mesmo da chamada inteligência artificial, em que já se cogita a substituição do orgânico pelo sintético, ilustram bem o que quero dizer.

Mas a filosofia e a literatura, como a arte em geral, não são tentativas de significação no mesmo nível dos atos ordinários, da técnica ou da ciência. Elas não são um mero fazer. Ao contrário! Enquanto se utilizam da linguagem para representar o próprio homem em seu trânsito significativo, elas se constituem meios privilegiados de significação. Meios nos quais o homem pode se ver, sondar seu destino e enfim aceitá-lo.

Diferentemente de todos os demais modos de significação, filosofia e literatura não são necessariamente rotas de fuga, mas meios possíveis de condução do homem ao seu ser-próprio, ao seu destino.

Destino, conforme aqui concebido, é o ser-próprio do homem. É o Não, é aquela Ausência que desde o início o espreita e o obriga a significar. É bem verdade que o homem pode nunca reconhecê-lo. Pode também, reconhecendo-o, recusá-lo e empreender rotas de fuga em busca de garantias, como, aliás, tem feito a maioria das vezes, seja na história da espécie, seja na história do indivíduo.

Em qualquer dos casos, porém, seja aceitando o destino, seja recusando-o, o certo é que daquele Nãocontinuará a brotar a cultura e a história. O que mudaria, certamente, no caso da aceitação, seria a saúde do homem, a relação dele com a vida. Mas este talvez seja um passo impossível. É que ao ser-próprio não se chega antes de uma séria decisão, de grandes recusas, e de uma revolução pessoal.

No caso da literatura, o trânsito para o destino ou para longe dele é mostrado por meio de imagens, onde se representam, com personagens e situações, os homens na busca por significados, estes aqui pensados como garantias contra aquela Ameaça. No caso da filosofia, a questão do destino é posta em evidência mediante um trabalho conceitual, abstrativo, em que se busca compreender os próprios fundamentos da busca, isto é, da essência do significar, bem como apontar caminhos, propostas de sentido. Em ambos os casos, seja com o exemplo, seja com o conceito, está em jogo a perspectiva essencial dessa luta e dessa busca.

Mas essas distinções não opõem necessariamente as duas formas de representação, como, aliás, nos mostram a história de ambas.

Em todo caso, o destino do homem, o ser-próprio, tem a ver com a existência. Mas a mera existência, como suposto, não implica necessariamente a aceitação do destino.


VERTIGEM E SIGNIFICAÇÃO


O homem recusa olhar para baixo. Um frio agudo lhe atravessa as plantas dos pés, espinha e estômago se por um segundo encara o abismo em que despenca. Ele sabe quem está lá: um fantasma expectante a cuja lembrança logo repele. Ele conhece o fantasma e dele é conhecido. Sua própria alma, nua e solitária, é quemestá lá. É que o abismo, dada a profundidade, forma, como a lonjura do asfalto quente, um espelho, fundo refletor. Eis o segredo do abismo. Não será por isso que "se você olhar longamente um abismo, o abismotambém olha dentro de você", como disse alguém certa vez? (Além do Bem e do Mal, aforismo 146).

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